É aceitável o aborto por motivo de estupro ou incesto?

Abaixo segue uma tradução livre de um trecho do excelente livro “Defending Life”, de autoria do professor de Filosofia e Jurisprudência Francis J. Beckwith, da Baylor University.
 
O trecho em questão é especificamente sobre a questão do aborto em casos de estupro e incesto. Nele, o autor desmonta a argumentação que tenta justificar tais tipos de aborto e mostra que é moralmente errado defender o aborto mesmo nestes casos extremos. Às acusações de falta de compaixão que são lançadas aos pró-vidas ele responde: A rejeição a endossar um homicídio injustificado não é falta de compaixão”.
 
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Argumento sobre estupro e incesto
 
Um mulher que engravida devido a um ato como estupro ou incesto é vítima de um crime extremamente violento e moralmente repreensível. Embora uma gravidez resultante de estupro ou de incesto seja um evento muito raro(19), esta ocorre algumas vezes. O estudioso de Bioética Andrew Varga, que é contrário ao aborto, assim sumariza o argumento sobre aborto em casos de estupro e incesto:
 

“Argumenta-se que nestes casos dramáticos o maior valor da saúde mental de uma mulher que tenha engravidado como resultado de estupro ou incesto pode ser melhor preservado através do aborto. Diz-se também que uma gravidez causada por estupro ou incesto é o resultado de uma grave injustiça e que a vítima não deveria ser obrigada a carregar o feto até a viabilidade. Isto faria com que a mulher recordasse por nove meses da violência da qual foi alvo e apenas faria aumentar sua angústia mental. Segundo tal argumento, o valor da saúde mental da mulher é maior do que o valor do feto. Adicionalmente, é sustentado que o feto é um agressor contra a integridade e a vida pessoal da mulher; e que é também justo e moralmente defensável repelir um agressor até mesmo através de sua morte se esta é a única maneira de defender valores pessoais e humanos. Chega-se à conclusão, desta forma, que o aborto é justificável nestes casos.”(20)

 
Há vários problemas com este argumento. Primeiro, este argumento não é relevante para o caso de aborto por demanda, posição defendida pelo popularmente chamado “movimento pró-escolha”. Esta posição diz que uma mulher tem o direito de fazer um aborto por virtualmente qualquer razão durante todos os nove meses da gravidez (ver capítulo 2). Argumentar pelo aborto por demanda a partir dos casos difíceis de estupro e incesto é como tentar argumentar pela eliminação das leis de tráfego pelo fato de que alguém possa ter de violar algumas destas leis em raras circunstâncias, tal como alguém que precise levar com urgência a esposa ou filho até um hospital. É importante lembrar que a posição “aborto por escolha” e o regime atual da legislação norte-americana é que aborto é um direito fundamental que pode ser exercido apenas a critério da mulher gestante e em consulta com um médico preparado para o procedimento. Conseqüentemente, se não houvesse casos de estupro ou incesto, ainda assim haveria um direito ao aborto de acordo com este entendimento jurisprudencial. Assim, os apelos ao estupro e incesto são literalmente irrelevantes para estabelecer um direito ao aborto. (Para mais sobre a questão de direito ao aborto e os populares apelos à piedade, veja a seção “Necessidade Social do Aborto para a Igualdade das Mulheres”).
 
Em segundo lugar, o nascituro não é um agressor quando sua presença não põe em perigo a vida de sua mãe (como no caso de uma gravidez tubária). É o estuprador que é o agressor. O nascituro é tão vítima inocente quanto sua própria mãe também é. Desta forma, o aborto não pode ser justificado com base em que o nascituro seja um agressor.
 
Terceiro, este argumento levanta a questão com a premissa de que o nascituro não é completamente humano. Pois se o nascituro é completamente humano, nós devemos perguntar se o alívio do sofrimento mental da mulher justifica a morte de um ser humano inocente. Mas o homicídio de um outro jamais é justificado para aliviar um desconforto emocional. Embora tal julgamento seja realmente angustiante, não devemos esquecer que o mesmo nascituro que a mulher focada na carreira irá abortar para evitar interferência em uma promoção no emprego é, biológica e moralmente, indistinguível de um nascituro que tenha resultado de um estupro ou incesto. Desta forma, o argumento sobre estupro e incesto é correto apenas se o nascituro não fosse completamente humano.
 
Quarto, se o nascituro é completamente humano (que é a questão real), requerer que sua vida seja eliminada para o alegado benefício de um outro é violar uma intuição básica de um julgamento ético: “nunca devemos matar uma pessoa inocente B para salvar a pessoa A”. Por exemplo. “não podemos matar João através da remoção de um órgão vital para que a vida de Maria, que necessita deste órgão, seja salva. Isto não é falta de compaixão por Maria; é a rejeição a cometer um assassinato, mesmo por uma boa causa. João tem o direito de não ser morto para o benefício de Maria, mesmo que seja para salvar a vida dela. Maria tem o mesmo direito. Nós não podemos matar a mulher para beneficiar a criança. E da mesma forma, não podemos matar a criança para beneficiar a mulher”. No aborto, “a criança está sendo sacrificada para o benefício de um outro. Ela não tem nenhuma obrigação de fazer tal coisa; não é correto forçá-la. Os que defendem o aborto devido a estupro dariam suas vidas voluntariamente para que um outro pudesse ser beneficiado de forma semelhante? Em caso negativo, é correto forçar uma outra pessoa a fazer isto? Em caso positivo, ao menos eles têm a oportunidade de fazer uma escolha; a criança não tem esta escolha”(21). Simplesmente porque algumas pessoas acreditam que a morte de um nascituro possa resultar na felicidade de um outro não significa que a criança tem o dever de morrer.
 
Alguns defensores da legalização do aborto alegam que os pró-vida não têm compaixão, uma vez que a posição pró-vida sobre estupro e incesto força uma mulher a carregar seu bebê contra sua vontade. Nada poderia estar mais longe da verdade. É o estuprador que já forçou esta mulher a carregar sua criança, não os pró-vidas. Os defensores da vida apenas querem prevenir que um outro ser humano inocente (o nascituro) torne-se vítima de outro ato violento e moralmente repreensível, o aborto, porque dois erros não fazem um acerto. O que faz o aborto um mal é a mesma coisa que faz o estupro também um mal: uma pessoa humana inocente é brutalmente violada e desumanizada. A rejeição a endossar um homicídio injustificado não é falta de compaixão. Como Schwarz mostra com o exemplo a seguir, algumas vezes a atitude mais moralmente correta não é a mais aprazível:
 

“Uma pessoa em um campo de concentração pode ter a oportunidade de se tornar um informante, o que significa uma vida melhor para ele. Mas também significa trair seus amigos e causar-lhes mais sofrimento. Moralmente, ele é forçado a permanecer em sua mísera situação atual, ao invés de cometer um mal moral, ou seja, trair seus amigos, talvez causando suas mortes. Se uma mulher é forçada a continuar uma gravidez, tal caso é similar neste aspecto, que ela é também forçada a permanecer em um estado lamentável porque a alternativa é um mal moral, a morte de uma criança inocente.”(22)

 
Quinto, Michael Bauman observou: “Uma criança não perde seu direito à vida simplesmente porque seu pai ou sua mãe era um criminoso sexual ou um desviado”(23). Bauman também aponta que ao usar o argumento sobre estupro/incesto o defensor do aborto está fazendo a suposição problemática de que a vítima de estupro é a mais qualificada para administrar a justiça e que deveria ser permitido matar a prole do criminoso. Mas se o nascituro é inteiramente humano (que é a real questão), este tipo de “justiça” não se assemelha com o que pessoas razoáveis pensam como justiça, pois “uma nação civilizada não permite que a vítima de um crime sentencie à morte a prole de um criminoso. Dar poder a uma vítima de ofensa sexual para matar o filho do infrator é um ato até mais deplorável do que o estupro que o concebeu. A criança concebida por estupro ou incesto é uma vítima também. Nos EUA, nós não executamos as vítimas”(24). Bauman conclui:
 

“Porque nosso governo é um governo de leis e não de homens, não devemos consignar justiça e moralidade aos caprichos sedutores das vítimas. Elas, entre todas as pessoas, devem ser as menos capazes de dar um veredito justo ou identificar o caminho da mais alta virtude. Estou convencido de que quanto mais alguém é maltratado, mais provável é que vingança e a conveniência pessoal pareçam àquela pessoa como algo bom. Enquanto as vítimas de estupro com certeza conheçam bem o horror e a indignidade do crime em questão, sendo vítimas de tal crime não lhes confere experiência ética ou jurisprudencial. Nem lhes permite exercer justiça de forma equilibrada ou satisfazer as demandas do imperativo moral com cautela, conhecimento, finesse ou precisão. Se a uma pessoa lhe faltava conhecimento ou mostrava despreparo sobre Ética ou Penologia anteriormente ao crime, como é o caso com a maioria de nós, tornar-se uma vítima em nada altera este fato. A Justiça é tradicionalmente retratada como sendo cega, não porque ela tornou-se vítima e teve seus olhos removidos de forma criminosa, mas porque ela é imparcial. Vítimas de estupro, como acontece com todas as outras vítimas de crimes, raramente podem ser confiadas para serem suficientemente imparciais ou retamente éticas, especialmente levando em conta que elas muitas vezes decidem que a melhor alternativa disponível a elas é matar o filho do criminoso.” (25)

 
Nenhuma pessoa moral nega a tragédia e a degradação do estupro e do incesto. Estes são crimes horríveis que resultam em danos emocionais, psicológicos, físicos e espirituais para as vítimas. Contudo, admitir o aborto em tais casos é ignorar um princípios ético que parece uma intuição moral muito bem fundamentada: “Àquele que sofreu uma injustiça não lhe é permitido impor ao que não cometeu a injustiça (e que não é, desta forma, culpado) a responsabilidade pelo que lhe foi imposto”(26). Embora, como eu argumento no capítulo 7, uma mãe possa ter menos responsabilidade para com uma criança concebida em estupro do que com uma criança que tenha vindo como resultado de uma relação consensual, isto não significa que ela, ou qualquer outra pessoa, tenha o direito moral de matar a criança concebida em um estupro.
 
 
 
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Notas:
 
19. Concerning this, Krason writes: “A number of studies have shown that preggnancy resulting from rape is very uncommon. One, looking at 2.190 victims, reported pregnancy in only 0.6 percent [Charles R. Hayman, M. D. ,‘Pregnancy and Sexual Assault,’ American Journal of Obstetrics and Gynecology 109 (1971): 480-486]. Barbara M. Sims, who once served as an assistant district attorney in Erie County, New York (Buffalo and vicinity), wrote in 1969 that the district attorney’s office in her county ‘contain[ed] no reported complaints of pregnancy from forcible rape or incest for the past thirty years’ [Barbara M. Sims, ‘A District Attorney Looks at Abortion,’ Child and Family 8 (I969): 176, 178]. In one study of 117 rape victims in Oklahoma City over a one-year period, there were no pregnancies reported [Royice B. Everett, M.D., and Gordon K. Jimmerson, ‘The Rape Victim: A Review of 117 cases,’ Obstetrics and Gynecology 50(1977): 88, 89]. The Cook County, Illinois (which includes Chicago), States Attorney’s Office could not recall a single instance of pregnancy in about nine years of prosecuting rape [Eugene F. Diamond, M.D., ‘ISMS Symposium on: Medical Implications on the Current Abortion in Illinois,’ Illinois Medicine 131 (May 1967): 678]. St. Paul, Minnesota, did not report a single pregnancy from rape in over ten years [Fred B. Mecklenburg, M.D., ‘The Indications for Induced Abortion: A Physician’s Perspective,’ in Abortion and Social Justice, ed. Thomas W. Hilgers and Dennis J. Horan (New York: Sheed and Ward, 1971), p. 38]” (Krason, Abortion, 281).
 
20. Andrew Varga, The Main Issues in Bioethics, rev. ed. (New York: Paulist Press, 1984), 67-68. Varga himself, however, does not believe that abortion is morally justified in the cases of rape and incest.
 
21. Stephen Schwarz, The Moral Question of Abortion (Chicago: Loyola University Press, 1990), 146, 151.
 
22. Ibid., 148.
 
23. Michael Bauman, Pilgrim Theology: Taking the Path of Theological Discovery (Grand Rapids, MI: Zondervan, 1992), 197.
 
24. Ibid.
 
25. Ibid., 198.
 
26. Michael Davis, “Foetuses, Famous Violinists, and the Rights to Continued Aid”, Philosofical Quaterly 33 (1983): 268, como citado em Patrick Lee, Abortion and Unborn Human Life(Washington, DC: Catholic University of America Press, 1996), 122.

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